aviso: esse texto aborda violência de gênero (da perspectiva de uma mulher cis e branca) e pode despertar sentimentos ruins.
Queria não ter que pensar nas coisas que tenho que pensar. Acho que essa é uma constante na vida de todas as meninas, de todas as mulheres. Queria ter o direito de viver com ingenuidade, com despreocupação, só ocupar minha cabeça com o que diz respeito a mim, só seguir a vida sem essas milhões de abas constantemente abertas. Essas abas que são sinais de alerta, letreiros neons com sirenes que nunca param. Elas vão de “andar no meio da rua na parte iluminada ao voltar do mercado” até “posso ouvir essa música e dar stream pra esse cara ou ele já bateu em uma mulher?”.
É cansativo, esse modo de alerta constante. É pior do que isso, é cruel, é desesperador. Como é chato ser a pessoa que vai dizer “Ah sim, mas o Elvis Presley casou com uma criança.” Até porque a lista de chatices só aumenta, a gente fica sabendo de tudo agora. Nós simplesmente não temos direito à ignorância. Chega um momento em que é quase impossível ser uma mulher e ainda apreciar alguma coisa, por mais simples que seja, porque o mundo é dos homens e os homens destroem tudo.
Em ‘Tédio Terminal’ (DBA), a Izumi Suzuki escreveu: "No princípio, só havia mulheres na Terra. Viviam em paz, mas um dia uma mulher deu à luz uma criança diferente. Tinha uma aparência estranha, era meio bruta em tudo o que fazia, estabanada; morreu depois de causar, por anos, todo tipo de transtorno à sua volta, mas não sem antes deixar descendentes.”
Em pensar que não existem homens sem mulheres, mas ao chegar no mundo, ao absorver o soro do patriarcado, meninos pouco a pouco viram homens. E quando viram, está feito. Eu vi meu primeiro melhor amigo, um menino, passando por essa transformação. Talvez ele não se lembre, mas eu lembro. Nós jogávamos futebol, como sempre. Crianças bem crianças. Ele apertou meu peito de criança. Eu bati nele, como uma criança. Depois nunca mais saímos pra brincar juntos. Não sei por quanto tempo fui questionada por ter acabado com a amizade. Essa responsabilidade se tornou minha. Boa sorte para quem está criando meninos nesse mundo de homens.
Isso aqui não tem um objetivo, é só uma constatação sobre o fim. Se nem a história, a antropologia, a psicanálise, a educação como um todo, um lar perfeitamente estruturado, se nada disso é capaz de solucionar o problema ‘homens’, quem sou eu. As coisas estão mudando? Não estão. A gente vai ficar aqui gritando mesmo, muitas vezes sozinhas, tendo nossas histórias questionadas sempre que um presente de deus fizer algo de errado. O machismo é muito lucrativo. O machismo é uma máquina de matar que te mantém viva porque o definhar da vítima é puro prazer.
Eles vencem no final.
Há várias pessoas esperando na fila do mercado, mas um homem resmunga, bufa, trata mal a atendente porque o tempo dele vale mais do que o tempo de todo mundo. Você vai atravessar na faixa e com o sinal fechado pra carros, mas tem esse cara no volante e ele quase te atropela. Ele só não esperava que uma mulher fosse bater no para-choque e chamar ele de maluco. O cérebro envia a mensagem: ele vai descer, ele vai te bater, ele vai te matar. Um escritor de fantasia muito amado e muito progressista na verdade é um agressor sexual. Um ex-namorado não acha importante dividir tarefas domésticas e vive como um porco na sua casa. Um bilionário compra redes sociais e libera discurso de ódio, fake news e deep fake. Um noivo permanece em um grupo de whatsapp onde são expostos aqueles nudes vazados. Um cara do trabalho rouba suas ideias. Outro cara da sua área elogia tudo o que tu sabe, só porque quer te comer. Você perde um amigo e automaticamente perde um pouco da sua infância. Um irmão tira fotos da própria irmã dormindo ou tomando banho para compartilhar no discord. Um jogador de futebol e ídolo nacional paga a fiança de seu melhor amigo estuprador. Uma bancada tem autorização de existir com o único intuito de obrigar crianças violentadas a serem mães. Um governo retira o direito constitucional ao aborto. Outro governo propõe retirar meninas das escolas para que elas não tenham escolha a não ser casar. Vários caras poderosos e também intelectuais, cultos, desconstruídos se reúnem por um bem comum, humilhar mulheres.
E todos eles, em algum momento, serão bravamente defendidos por outras mulheres.
Eles vencem no final.
"Chega um momento em que é quase impossível ser uma mulher e ainda apreciar alguma coisa, por mais simples que seja, porque o mundo é dos homens e os homens destroem tudo."
Aqui você divou
Que texto, Camila. E que mulher em algum momento não teve a vida destruída por um homem.